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Anjos Negros

dias antes, 01 de Abril de 1989

Belém do Pará

Guillermo, o Chileno, acordou cedo e disposto naquela manhã chuvosa. Depois de duas semanas rondando Belém, achou um meio de trocar os 2.500 dólares que tinha em traveler´s cheques frios sem precisar de passaporte.

De fato, o problema com esses cheques de viagem da American Express era a assinatura do nome Legrand... legível demais. Enquanto o passaporte suíço que utilizava estava com o nome de Kotenberger.

Após ter permanecido seis anos na Europa, onde havia se exilado quando o general Pinochet deu o golpe de estado no Chile, Guillermo aprendeu a falar fluentemente o francês e por isso usava de preferência documentos de países de língua francesa.

De físico avantajado e rosto simpático, ele geralmente inspirava confiança nas pessoas. Essas vantagens, adicionadas ao grande poder de persuasão que tinha, faziam dele uma pessoa extremamente perigosa, sobretudo para os gringos, suas vítimas prediletas.

Há algum tempo, ele tinha ido à polícia dizendo-se roubado. O escrivão, mediante uma gorjeta bem interessante, acabou por liberar uma declaração oficial afirmando que o sr. Legrand Jacques, de nacionalidade francesa, havia tido seu passaporte furtado, além de alguma quantia em dinheiro, nos arredores da estação rodoviária. Porém, apesar desse documento legítimo da Polícia Civil Paraense, os bancos e casas de câmbio recusavam-se normalmente a trocar os cheques de viagem sem o passaporte do portador.


fotografia: Grácia Queiroz


À força de procurar, já quase desesperado, o Chileno havia finalmente encontrado um hotel três estrelas, razoável, que operava câmbio clandestino. O recepcionista aceitou trocar os benditos cheques de viagem sem que precisasse apresentar passaporte nenhum porém por um valor inferior à cotação do dia, visto que o gerente - único a ter acesso ao cofre - já havia saído.

Eles combinaram fazer o negócio para o dia seguinte na parte da manhã. Como era ainda muito cedo, Guillermo resolveu tomar o desjejum no balcão de uma das numerosas lanchonetes que ladeavam a estação ferroviária.

A chuva havia parado e o mormaço úmido dessa região equatorial o deixava constantemente banhado de suor.

Se tudo desse certo com o gerente do Hotel Palácio das Musas, a primeira coisa que faria seria pagar a conta atrasado do Hotel Kioto, onde estava hospedado, para em seguida passar finalmente uma tarde agradável na Ilha do Mosqueiro, tomar um banho no rio Amazonas e quem sabe até arrumar uma das putinhas que pululavam por essas bandas, para relaxar desses dias de tensão.

Nesse momento de reflexão, aproximou-se um tipo caipira, trajando calça xadrez em preto e branco, um tanto curta, deixando aparecer um par de sapatos surrados de sola compensada, como era moda nos anos 70. Vestia também uma camisa de tecido barato, toda estampada em verde e amarelo, demonstrando ridiculamente o patriotismo do tabaréu.

O recém-chegado parou na frente de Guillermo e perguntou com uma voz anasalada:


- O senhor pode me emprestar um minuto de sua atenção?

Guillermo, mastigando um misto-quente, demonstrou indiferença temendo que o caipira viesse lhe encher a paciência. Respondeu ainda de boca cheia:

- Qual é o caso, rapaz? Qual é o caso?

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Jean Eugène MOUCHÈRE, Anjos Negros. Salvador: Novesfora, 2013, pp. 89-91.


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