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à noite, sentada à sua maneira


Yasmine tirando um cochilo no meio d´"A Noiva" (1918), tela inacabada de Gustav Klimt (1862-1918).


À noite, sentada à sua maneira, Maria observa o mundo. Calada, olhos arregalados na escuridão, os caramelos há tempos já se dissolveram na chicara de café amargo, seus olhos verdes repousam intrigado, porque hoje caramelo? Ainda sentada, sempre calada, ela vê o português se aproximar, inquieto, tendo percebido finalmente o pão com mortadela encima do prato ele se senta, como cheirava a mortadela e cebola guardada aquele homem, culpa de ter uma padaria? Os cheiros podem dizer sobre uma pessoa e suas paixões? ou os cheiros só mostram o hábito de relutar a fechar os pacotes com fita adesiva, relutância de retirar aquilo que apodrece, de esquecer de coisas que já foram, ou hábito mesmo de pensar em morte, a cadela da infância que jaz no quintal, todas essas memórias que vinham com a cebola abandonada na última gaveta da geladeira, justamente aquela que é uma bagunça e que ninguém mais olha. E aquele homem na sua sala, comendo pão na sua frente, a mortadela que escapa do pão e o ovo quase cru que escorre e de que forma outra faria, há coisas que escorrem, qual motivo outro colocava tanto caramelo na xícara se não fosse para ver ele escorrer, qual motivo outro teria pedido uma vara de pão com o padeiro se não fosse para ver escorrer ovos e caramelo juntos, em uma mesma sala, cheirando a cebola e mortadela. Olhava para o homem e para sua xícara, como se comprazia com aquele lanche, ele mal a olhava, e ela mal falava, e se tentava saía uma coisa balbuciada, culpa de Maria dizer e ninguém mais entender, falava então de suas xícaras, maiores e menores, quebradas e coladas, que cabem mais ou menos caramelo; o sabor de cada momento e o recipiente apropriado, só as xícaras entendiam o seu balbuciar ao escolhê-las, vício de observação, já sabia as que pendiam para a direita ou para a esquerda, aquelas que quando em contato com uma superfície lisa rebolavam até finalmente se estabilizarem, aquelas que se moldavam à densidade do que se bebia. E quem disse que sempre se bebia, há tantas coisas que se pode fazer com xícaras, é o que Maria dizia e ninguém entendia, e quem disse que dizia, sentada à sua maneira, Maria observa o mundo e o português que esfrega os dedos no resto daquilo que escorreu do ovo e que está agora no prato, calada, olhos arregalados na escuridão, os caramelos já não derretem mais, pinça-os com os dedos, balbucia alguma coisa, ninguém entende, se cala.


14/08/2015


Bainema via editorial

uma via de edição, um coletivo de artistas, uma produtora cultural

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