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Paulina Chiziane - parte 2

A multidão começa a arrepender-se. Ela tinha a forma humana, viram. Que nascera do ventre feminino, como elas, como os sapos, os peixes, as algas dos pântanos. Que a mulher tinha a sua história, as suas marcas, as suas cicatrizes. Nela se espelhava a fragilidade da existência. A multiplicidade dos caminhos. Doenças, mágoas, lágrimas. Sonhos derrubados, ansiedade, desespero. Só Deus sabe de onde ela veio. Só Deus sabe as lágrimas que ela chorou. Só ela pode contar as alegrias que o coração colheu. Os caminhos que percorreu. Só Deus sabe como é que ela aqui chegou. Talvez navegando no dorso das tartarugas. Na carapaça dos crocodilos. Na boca dos peixes, no rendilhado das algas. Na corrente da brisa.

- Ela trazia uma boa nova escrita do avesso — garante a mulher do régulo. — Mensagem de fertilidade. Essa maluca era a verdadeira mensageira da liberdade, minha gente.

A multidão se espanta e a mulher do régulo sorri. Da boca adocicada ela solta os melhores acordes. Dos braços pequenos abre-se um manto confortável como as asas de uma águia, onde a multidão de mulheres se aninha como rebentos de pássaros. Do seu peito solta-se um sopro de coragem que a brisa transporta para cada um. A multidão ouve a sua voz a penetrar. O sorriso a desabrochar. A mente a vadiar na paisagem dos princípios. O medo a escapar. Os ânimos se acalmando. O espírito a serenar. A princípio a voz ouvia-se perto. Depois longe. Mais longe ainda como alguém falando de amor no mais profundo dos sonhos. Era uma canção que recordava às mais novas todas as coisas antigas, dos princípios dos princípios, no conto do matriarcado.

Era uma vez...

No princípio de tudo. Homens e mulheres viviam em mundos separados pelos Montes Namuli. As mulheres usavam tecnologias avançadas, até tinham barcos de pesca. Dominavam os mistérios da natureza e tudo... eram tão puras, mais puras que as crianças numa creche. Eram poderosas. Dominavam o fogo e a trovoada. Tinham já descoberto o fogo. Os homens ainda eram selvagens, comiam carne crua e alimentavam- se de raízes. Eram canibais e infelizes. Um dia, um homem jovem tentou atravessar o rio Licungo, para saber o que havia. Ia afogar-se quando aparece a linda jovem, sua salvadora, que meteu o homem no seu barco. Como houvesse frio, a jovem tentou reanimar o moribundo com o calor do seu corpo. O homem olhou para o corpo dela, completamente aberto, um antúrio vermelho com rebordos de barro. Ali residia o templo maravilhoso, onde se escondiam todos os mistérios da criação. E depois...

A velha senhora era uma exímia contadora de histórias. Ela sabe as circunstâncias exactas em que se deve usar uma imagem e outra. O que deve ser omitido e o que deve ser dito. Os momentos que marcam e os momentos de pausa. A beleza da história depende da tonalidade da voz, dos gestos da contadora. Contar uma história significa levar as mentes no voo da imaginação e trazê-las de volta ao mundo da reflexão. Por isso impõe uma pausa. E suspense.

— Por que olham para mim? O que querem de mim? Que me ponha aqui a dizer indecências na presença das crianças que trazem nas costas? Não, não digo mais nada, de resto, vocês já sabem o vem a seguir. Agora, voltem para casa, para cuidar das crianças. Voltem!

As mulheres riem-se, a tranquilidade já foi conquistada. Aquela história encerra dentro de si mundos maravilhosos. Por isso querem ouvir aquilo que já sabem há dezenas de anos. As cenas de amor e traição. Da liberdade e luta. De atracção e rejeição. Absorver a doçura das palavras que emanam daquela boca e sonhar como as crianças.

- Ah, grande mãe, conta, termina esse conto, tão bonito!

- Pronto, já que me pedem, termino. Os homens invadiram o nosso mundo — dizia ela —, roubaram-nos o fogo e o milho, e colocaram-nos num lugar de submissão. Enganaram-nos com aquela linguagem de amor e de paixão, mas usurparam o poder que era nosso. Uma mulher nua do lado dos homens? Ó gente, ela veio de um reino antigo para resgatar o nosso poder usurpado. Trazia de novo o sonho da liberdade. Não a deviam ter maltratado e nem expulsado à pedrada.

Algumas mulheres recordam o conto e sorriram de esperança. A mulher do régulo reconhece que a fantasia das suas palavras surtiu efeito. Aquela louca simboliza o mundo novo da guerra, das doenças, da exclusão social, ao qual todos se encontram sujeitos.

- Ah! Mas então, de onde terá vindo?

- E nós de onde viemos? — pergunta a mulher do régulo.

- De longe — respondem ao mesmo tempo.

- E onde fica o longe?

- Todas buscam a resposta no silêncio. Os olhos vogam no horizonte, em silêncio. A mulher do régulo sugere algumas respostas.

Longe é a distância entre o teu percurso e o teu cordão umbilical. Longe é o útero da tua mãe de onde foste expulso para nunca mais voltar. É a distância para o teu próprio íntimo onde nem sempre consegues chegar. Longe é o lugar de esperança e de saudade. Lugar para sonhar e recordar. Longe é o além para onde muitos partem e deixam eternas saudades. O longe é gémeo do perto, tal como o princípio é gémeo do fim. Porque tudo muda na hora da meta. O ali será aqui, na hora da chegada. O futuro será presente. O amanhã será hoje.


Foi assim que viemos.
De longe

Daquele lugar de onde partimos

Para nunca mais voltar


Somos de diferentes gestas. Diferentes ventres. Diferentes lugares. Uns nascendo nos canaviais, outros na estrada. Uns no alto mar. Outros em camas douradas dos príncipes. Uns fugiram de casas de luto cobertas de fogo. Fogo posto. Por demónios. Demónios que incendeiam as águas dos rios. Outros nasceram da solidão dos guerreiros, solidão de heróis. Heróis vencedores e vencidos. Somos heróis do Atlântico, heróis da travessia dos mares bravos, para a escravatura na Guiné, Angola e São Tomé. Temos o sangue dos franceses, brasileiros, indianos de Goa, Damão e Diu, desterrados nos palmares da Zambézia. Viemos da nobreza e da pobreza. Viemos em passos silenciosos dos fugitivos, em passos agressivos de conquistadores. Nascemos diferentes vezes com diferentes formas. Morremos várias vezes, silenciosamente, como os montes na corrosão dos ventos.

O pensamento colectivo viaja para o longe, para lá onde não se pode voltar nunca mais. Para o tempo das lutas sangrentas, tempo de sofrimento. Com bandos de gente correndo para cá e para lá. Matando-se. Odiando-se de dia, na hora do combate. Amando-se de noite, na pausa de fogo e deixando marcas de passagem. O ódio gerando amor na morte do sol.

Cada um recorda o seu próprio percurso. As pedras do caminho. Percursos alegres, tristes, desesperados, espinhosos. E começam a pensar na louca do rio com brandura.

- Regressem às vossas casas e esqueçam a louca que foi com as ondas. Lembrem-se que somos todos filhos do longe, como essa Maria que viram nas margens do rio. Lembrem-se sempre de que a nudez é expressão de pureza, imagem da antiga aurora. Fomos todos esculpidos com o barro do Namuli. Barro negro com sangue vermelho.


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PAULINA CHIZIANE

trecho do romance "O Alegre Canto da Perdiz", 2008.



Bainema via editorial

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