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Paulina Chiziane - parte 1



- Mulher, não tens vergonha na cara? Onde vendeste a tua vergonha? Não tens pena das nossas crianças que vão cegar com a tua nudez? Não tens medo dos homens? Não sabes que te podem usar e abusar? Oh, mulher, veste lá a tua roupa que a tua nudez mata e cega!

Ela responde com a linguagem dos peixes do rio. Sorri. Olha para o chão. Para o céu. Com brandura. Com candura. Os olhos emanam muita luz e uma miríade de cores. Ela é simpática. Ela é agradável. Tem dentes muito brancos. Completos. Ela é bonita. Tem sorriso de anjo. O que é que ela vê, para além do horizonte?

- Esconde a tua vergonha, mulher.

A imagem de Maria distorce o sentido mágico da nudez das sereias. Parece trazer o presságio da tempestade à flor da pele. Os corações se dilatam de piedade. De medo. Há mensagens de perigo escondidas nas linhas nuas do corpo. Nos grãos de areia. Na Via Láctea. Nas barbas do sol. Nas pálpebras da lua. Nas pegadas de um pescador qualquer à beira do rio. Nas rajadas de vento. Esta mulher não veio ao acaso. Mensageira do destino mau.

- Ouve, mulher: se não te vestes a bem, vais vestir-te a mal.

Ameaçaram-na. Talvez ela assim tivesse medo e se vestisse. Mas ela acomodava-se ainda mais no seu espaço, sereia rainha em trono de barro. Ela vê os olhos da multidão. Mais escuros do que a noite, os raios do poente moram naqueles rostos. Olhos de lágrimas e de angústias. Os rostos das adversárias. Vê-lhes os pés semeados no solo como se o chão tivesse parido sombras. Sombras ambulantes. Sombras em movimento.

- Mulher, veste-te!

Mas o exército de mulheres estava de mãos nuas. Confiavam na arma da língua. Da persuasão. Da negociação. Era um exército pacífico. Uma das mulheres manda um grito para despertá-la. Outra procura uma pedra para açoitá-la. Outra procura um pau para moralizá-la. Gera-se uma onda de violência no palco das águas. Não há paus nem pedras. Só areia molhada, barro, lama que a multidão empunha como arma contra a mulher indefesa.

As vozes da multidão ululam furiosas como uma onda. Era a superstição e o medo aliando-se como fios da mesma corda. Punhados de areia caem no corpo da mulher nua como chuva de granizo. O seu peito incha com a força do medo. Expira o ar quente que o vento colhe para o infinito. E dá um mergulho no rio e navega na impulsão das águas, como uma ninfa rolando nas ondas. Mergulha para o fundo e para a superfície num vai e vem de lua e nuvem no jogo da banana-ainda-não-comeu. A água solta anéis de arco-íris numa miríade de ondas. Já longe, a mulher nua sibila um riso venenoso, que cai como espada sobre as lanças do inimigo. E celebra o seu triunfo sobre a multidão.

Ali estava a heroína do dia. Protegida na fortaleza do rio. Num trono de água. Que venceu um exército de mulheres e colocou desordem na moral pública. Que desafiou os hábitos da terra e conspurcou o santuário dos homens.


***


Quando a multidão parte, a louca regressa ao mesmo ponto. Quer ouvir vozes perdidas nas águas do rio. A mensagem chegaria, ela tinha a certeza. Na mesma hora que a emitia. Por telepatia.

Maria das Dores é o seu nome. Deve ser o nome de uma santa ou uma branca porque as pretas gostam de nomes simples. Joana. Lucrécia. Carlota. Maria das Dores é um nome belíssimo, mas triste. Reflecte o quotidiano das mulheres e dos negros.

Ah, minha mãe, eis-me aqui à beira do caminho. Ao lado do vento amigo. Na margem de um rio desconhecido. Perseguida por mulheres tristes. Naqueles gritos ouvi também o teu grito, minha mãe. Mãe, estavas naquele grupo? Por que será que não te vi? Por que não me mostraste o teu rosto, mãe? Eras tu, sim, naquele grupo de fantasmas, lançavam zumbidos nos meus ouvidos como um enxame de vespas. Eras tu e o teu grupo de fantasmas, querendo atingir-me, magoar-me, escondidas para desferirem sobre mim os seus golpes de raiva, mas não conseguiram, eu fui protegida pelas águas. Porque sou filha da água. Será que estou nua, mãe? A nudez que elas viam não é a minha, é a delas. Dizem que não vejo nada e enganam-se. Cegas são elas. Gritam sobre mim a sua própria desgraça e me chamam louca. Mas loucas são elas, prisioneiras, cobertas de mil peças de roupa como cascas de uma cebola. Com o calor que faz.

Já não sei bem de onde vim, nem para onde vou. Por vezes sinto que nunca nasci. Estarei ainda no teu ventre, minha mãe? Todos perguntam de onde venho. Querem saber o que sou, porque nada sou.

Eu tenho o destino do vento, e tenho a vida presa nas teias de uma esperança desconhecida. A rosa-dos-ventos. Tenho o destino dos pássaros. Voando, voando, até à queda final. Tenho destino de água. Sempre correndo em todas as formas, umas vezes nascente, outras vezes rio. Outras vezes suor e outras lágrimas. Dilúvio. Gota de orvalho na garganta de um passarinho. Sou vapor aquecido pela vida. Sou gelo e neve na câmara de um congelador. Mas sempre água, o movimento é a minha eternidade. Sou um animal ferido por todas as coisas. Pelo cantar dos passarinhos, pelo vermelho dos antúrios, pela floração das violetas. Ferida pelo sonho, pela ilusão. Pela esperança e pela saudade.

Quem sou eu? Uma estátua de barro, no meio da chuva. Odeio as roupas que me limitam o voo. Odeio as paredes das casas que não me deixam escutar a música do vento. Eu sou a Maria das Dores. Aquela que desafia a vida e a morte a busca do seu tesouro. Eu sou a Maria das Dores, e sei que o choro de uma mulher tem a força de uma nascente. Sei com quantos passos de mulher se percorre o perímetro do mundo. Com quantas dores se faz uma vida, com quantos espinhos se faz uma ferida. Mas não tenho nome. Nem sombra. Nem existência. Sou uma borboleta incolor, disforme. Das palavras conheço as injúrias, e dos gestos, as agressões. Tenho o coração quebrado. O silêncio e a solidão me habitam. Eu sou a Maria das Dores, aquela que ninguém vê.


***


As mulheres abandonam o rio e correm velozes à casa do régulo para buscar a solução do enigma. Vão à casa do régulo, mas ele não está, foi à taberna tomar o trago vespertino na assembleia dos homens. A sua velha esposa abandonou os seus afazeres para acudir à multidão assustada. Os olhos de terror convergindo sobre ela. Olhos anémicos, incrédulos. E as vozes falavam todas ao mesmo tempo. Deliravam. A velha senhora não conseguia sequer ouvir o que diziam. O que queriam. Sabia apenas que tinham fome no espírito. Teve que bater as palmas e soltar um grito para impor o silêncio.

- O que houve? O que vos traz aqui?

- A senhora que conhece os segredos deste e de outro mundo, os caminhos do além, os detalhes do mistério do horizonte, acuda-nos.

- Porquê?

- Aquela mulher nua nas margens do rio. Parecia uma deusa, ou um demónio!

- Qual mulher?

- Uma desconhecida — grita uma delas como uma possessa. Porque é que ela veio e se alojou exactamente do lado dos homens? Ela é leve, ela nada como um peixe. Será humana? Sereia? Ninfa? Fantasma? A senhora que vê tudo, diga-nos que desgraça vem a ser esta: haverá chuva? Seca? Doenças nos rebanhos? Conflitos piores que a guerra?

As vozes das mulheres eram bandeiras de medo ondulando na tempestade. Não viram nada de real. Viram o papão. Por isso produzem ruído e discursos confusos.

Projecções fantásticas das histórias à volta da fogueira, as meninas bonitas, bondosas, obedientes, trabalhadoras casam-se com príncipes dourados, têm muitos filhos e vivem felizes para sempre. As meninas maldosas, mentirosas, desobedientes e preguiçosas, no final da história são castigadas, não arranjaram marido, nem filhos, vivem solteironas e infelizes para sempre, e acabam enlouquecendo. Crenças. De dádivas e destinos. Pragas. Profecias. Castigos.

- Disse chamar-se Maria — explica uma das mulheres.

- Será mesmo esse o seu nome? — pergunta a mulher do régulo. Toda a Maria tem outro nome, porque Maria não é nome, é sinónimo de mulher. Mas digam-me: como era ela?

- Ela tem forma de gente mas não é gente. Parecia anjo do mal. Mensageira de desgraças. Parecia um fantasma, um ser de outro mundo — diz uma.

- Ela trazia nas asas os ventos das marés bravas — dizia outra.

A mulher do régulo reconhece rapidamente as razões da zanga colectiva e responde com um arco-íris. Histórias de vida soltam-se dos arquivos da memória como files de um computador. Cada um tem o seu percurso, cada um tem a sua história. A presença dessa alma penada tinha uma razão óbvia. O mundo está às avessas, devasso. A humanidade é expulsa a uma velocidade assustadora, e as pessoas se tornavam selvagens, canibais.

- Calma, criaturas. Não houve presságio nenhum na guerra que foi, mas morreu gente. Não houve anúncio na seca que findou, mas houve tormenta. Não houve profecias misteriosas antes da praga de gafanhotos que dizimou os campos e nos matou de fome.

A voz da mulher do régulo era chuva fresca. Tinha o poder de serenar multidões. Era o poder das ondas mansas embalando as embarcações na valsa da brisa.

- Ah, senhora! Se visse a forma misteriosa como ela veio! Insultámo-la e respondeu-nos com gozo no rosto. Lançámos pedras e ela escapou como um peixe. Não era pessoa deste mundo, não.

- Coitada, não passava de um rato à procura de uma toca. Ou uma mandioca. Era um ser solitário em busca dos seus semelhantes. Por que a expulsaram?


continua....

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PAULINA CHIZIANE é uma moçambicana porreta! Nasceu em 1955 num subúrbio da atual Maputo, na época uma capital colonial chamada Lourenço Marques. A prosa dessa autora densa, lírica e precisa é imbatível. A luta da autora pelos direitos das mulheres é o que há. Viva Paulina! Viva as mulheres negras! Viva a literatura africana em língua portuguesa!


A imgaem do post é um detelhe de "Transcendências" do pintor MALANGATANA (1936-2011), também moçambicano.


Bainema via editorial

uma via de edição, um coletivo de artistas, uma produtora cultural

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