o talho perdido da face da santa a santa talhada na perda da face
O pior não é morrer de fome no deserto, é não ter o que comer na terra prometida.
José Lins do Rego
1.
para substituir o talho perdido
para substituir o talho perdido da face da santa, uma flecha, um olho de vidro. A rainha cozinha o corpo de um velho dentro daquele caldeirão de pau, doado com muita pressa, cebola, alho, papoula e realho. Há tanto mármore debaixo da escama da jibóia.
a rainha ferve punhais, gangrenas, bons bocados. Para substituir o crânio de Santa Brígida: um nenê morto, uma mandrágora. O reflexo do osso é o olho do reflexo. Maldição ao que afiou nesta vida a primeira navalha. A vida é um couro de jibóia.
água, terra e ar:
o caminho aberto do fogo
retalharam a face da madona de cedro. A rainha chora no quintal, no sumidouro estéril de aguardente sobre gazes amarelas. O enterro. O desterro. A fonte.
2.
o velho natimorto
o velho natimorto mastigava cactos,
e choviam olhos de muda
o homem, o rei ausente, não teve mulheres, nem cardos de herança, não foi, não veio. Caiu no areal imenso, na adusta Líbia, crivado de flechas e de feitiços. O caminho aberto do fogo, o caminho aberto pelo homem. Maldito seja.
o homem pastoreando a roda de fogo. O vidro é o homem, esses óculos, o homem de óculos cortados, esse ralho perdido, o derradeiro fio d´água. Parlendas, navalhas. Maldito seja o inventor dos broquéis, dos helicópteros, dos punhais, das limalhas de aço debaixo das unhas tortas, das navalhas sob as couraças!
ficam as limalhas, vão-se os punhais. Quem sabem também uma das...
3.
a santa despedaçada
a santa despedaçada, a santa esfaqueada já foi substituída. Quem é que anda chorando, então, suas lágrimas de cola quente naquele canal do Youtube?
a santa vendida aos pedaços e a rainha cozinhando dentro do paço. há quem se entreteça? O rei gritava, desse jeito, para o velho fervido: ´sperai! Caí em terra estrangeira, num areal imenso. A morte, o aporte, o mandiocal vasto, uma pequena fortuna numa arca de pau-d’arco. O olho do rei tem farpas que ligam as estrelas do céu? O rei era o olho do meu pai?
o que ele viu que eu não sei
o que ele olha é osso
é mão, é mármore, é o caroço que me trai? E de poros abertos sinto o meu corpo flácido, irredutivelmente broxa, pelancudo e o meu rego imundo de velho partido em cinco pedaços de indissolúvel carnadura. O caldeirão de pau borbulha, tá vendo aquele maometano? Ele escava, soturno, o deserto dos patriarcas. Fuça, guincha, sua feito um porco. Procura o morto, honra o adversário batido, catimba e ainda pode ser acusado de olho gordo.
A fita gravada, a rainha cozida na copa, uma faca e uma carranca em carrara. Tudo do mesmo dono. Maldito seja! A faca desponta, o rio é de paus, o deserto é de ouros. O que é que carrega o rei, mais que patético, impotente, em sua ponta de espada? A tradição é o crânio de uma santa, é a pele inteira da cobra. O rei substitui o cedro roubado, a genitália deixada como dádiva, as flechas, o couro gangrenado de São Sebastião. Que dono pródigo, Senhor!
4.
colho, retiro e me atiro no mistério
colho, retiro e me atiro no mistério do olho. A madeira machada de suor, a tradição esquecida no areal distante. A rainha ferveu o corpo de uma cobra velha, de um sonho idoso, de excessos incontáveis.
para substituir o talho perdido da face da santa é mister andar de quatro, ser moído, ficar cego, ser penetrado.
ó, vede o meu coração,
trespassado por seiscentas
muçulmanas setas!
a santa dorme só, enrodilhada. Ninho de jibóias, madeira ferida. E, no final da história, o soberano desaparecido ainda terá forças para perguntar ao tempo: : : : : :